“O espírito da esquerda existe e precisa de encarnação”.
(Edgar Morin,102 anos).
A encarnação da esquerda se dá na política e toma o corpo da
militância ao assumir o dever esquecido da iniciativa da ação e do discurso
afirmativo, que pedem saber e coragem. A um tempo, a esquerda ressuscita e se
encarna no corpo da militância, na eloquência de programa de governo sem
concessões ao neoliberalismo governante no mundo e aqui maquinando dia a dia,
por todo o tempo e por todos os meios a desconstituição ideológica do nosso
governo, assim condenando às calendas gregas – mais uma vez! – a esperança de
encarnação do espírito de uma esquerda tout court: o combate às desigualdades
sociais, pois é, tão só, e ao mesmo tempo tão moralmente grandioso, o pouco que
nos permitem as vagas da história de hoje.
Diante da ameaça de um novo Vichy, e o anúncio das trevas
que eram as promessas de seu governo, os franceses optaram pelo discurso de
Mélenchon. Enquanto Jordan Bardella, o líder na chapa de Le Pen e seu declarado
candidato à chefia do próximo governo, batia nas teclas reacionárias de todos
os tempos, como combate à imigração, ênfase nas políticas de segurança pública
e aumento dos recursos destinados às forças de segurança/repressão,
protecionismo industrial e ao multiculturalismo, a frente de esquerda, sob a liderança de
Mélenchon, defendia a justiça social e econômica, a redução das desigualdades e
o aumento do salário mínimo, uma reforma tributária progressiva e o
fortalecimento do Estado de bem-estar social destroçado pelo neoliberalismo,
uma política externa independente em face dos EUA, a proteção e ampliação dos
direitos trabalhistas, com a redução da jornada de trabalho. E, por fim, mas
como verdadeiro fecho, o fim da Quinta República, com uma nova constituição
elaborada com o objetivo de reduzir os poderes atuais do executivo e assegurar
o aumento da participação popular na gestão pública.
Eis a lição que os franceses liderados pela França
Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon nos ofereceram no último domingo, 7 de julho,
mês tão significativo para sua história: o de saber proteger-se do radicalismo
infantil, porque divorciado da realidade, sem todavia renunciar aos seus
princípios, mas, ao contrário, proclamando-os, e assim renovando-os. Na
reversão das expectativas mais desanimadoras ressalte-se a retomada, pela
esquerda francesa, da consciência prática da importância da militância e de sua
mobilização, as ruas como seu auditório de preferência. Não pode passar
despercebido o fato de que as eleições mobilizaram a sociedade francesa: as
estatísticas registram o comparecimento de 67% dos eleitores, o mais alto dos
últimos quarenta anos. Mas louve-se em primeiro plano o mérito de haver
triunfado a política de frente, ao reunir na Nova União Popular Ecologista e
Social (NUPES), além do França Insubmissa, o Partido Socialista, o Partido
Comunista e os Verdes, e, sem concessões de algibeira, haver conseguido levar
esse discurso às grandes massas inorgânicas, as que decidem as eleições,
aquelas com as quais por aqui não trabalhamos, aquelas que não mobilizamos.
Porque lhe foi possível, por seus méritos – a noção clara da
necessidade de manobras táticas para preservar a integridade estratégica –,
ingressar na disputa abrigada em um programa de governo realmente de esquerda,
sem concessões ao neoliberalismo que, repercutindo a força do monopólio
financeiro, percorre o mundo nesta antevéspera da falência do imperialismo, mas
em condições de discutir e negociar com as demais forças do sistema político.
Entre nós, nada obstante a vitória majoritária de 2022, a
discussão se trava em torno do déficit público; por força das circunstâncias,
nos limitamos, hoje, a rearranjos monetaristas, ainda repetindo bordões do
Banco Mundial e do FMI. Para “acalmar os ânimos”, nosso ministro da Fazenda
anuncia à Faria Lima a renúncia aos investimentos que nos ensejariam a retomada
do desenvolvimento econômico, sem o qual não se pode pensar seriamente em
proteção social.
Mesmo considerando a clareza dos resultados das eleições
francesas, ainda há muito de dúvida no cenário que o processo histórico nos
reserva. Estimemos que o desejado seja a realidade próxima e que seja possível
a coabitação de Macron com um quadro da esquerda vitoriosa, e que o programa da
frente de esquerda seja negociado, e em torno dessa negociação se definam o
novo primeiro-ministro e o novo governo.
Festejemos o que podemos comemorar, mas sempre com os pés na
terra. É preciso considerar, por exemplo, que, nada obstante o feito da NUPES,
a extrema-direita é o grupamento político partidário que mais cresce na França,
e neste segundo turno, se perdeu em número de cadeiras conquistadas, ganhou em
número de votos: 8,7 milhões (32% dos votos) contra 7 milhões (25,6%) dados à
esquerda. E sabe-se que os eleitores de Macron se perfilam à direita. O Reunião
Nacional de Marine Le Pen, de outra parte, é o único partido em ascensão
constante no crescimento de sua bancada na Assembleia Nacional, nos últimos 25
anos.
Não está claro a que ponto deseja chegar Macron
procrastinando a execução do que lhe foi ditado pelas urnas. Não parece crível
que pretenda ignorar. Não se sabe em quais condições governará sob minoria na
Assembleia, o que parece impossível nesse regime que os franceses herdaram de
De Gaulle com a Quarta República, que dá mostras de encaminhar-se para uma
crise político-institucional que poderá levar ao fim esse regime híbrido, que
se define ora como semiparlamentarismo e ora como semipresidencialismo, sem,
ser, realmente, nem uma coisa nem outra.
***
O “novo” Ensino Médio – O pior não é o Congresso Nacional
que aí está (o pior da história republicana) haver aprovado a “reforma”
educacional de Temer-Bolsonaro, sob encomenda das fundações empresariais, que
aprofunda a precarização da educação brasileira e agrava as desigualdades já
tão penosas e obscenas. Uma "reforma" que até mesmo – pasmem! –
promove o trabalho infantil, contra tudo o que possamos considerar avanço. O
pior nem é o golpe de mão (mais um) do coronel Arthur Lira, para acelerar a
aprovação da matéria, cerceando o debate. O pior, mesmo, é a anuência do
Governo Lula, manifesta na ambiguidade (por fim desfeita) do Ministro da
Educação e na tibieza insuperável do líder do Governo na Câmara.
Um fato triste e embaraçoso, que nos cobra uma profunda
reflexão.
Ainda a “reforma” – Proclamado o resultado pelo jagunço das
Alagoas, o ministro da educação, o líder do governo e as fundações empresariais
comemoraram, enquanto estudantes e professores alternavam revolta e desalento.
Ou seja, nosso governo mostrou que sempre teve lado no tema: o ziguezague era
jogo de cena, para ganhar tempo. Um vexame para quem se vangloria de estar
sempre “do lado certo da história” – e provavelmente um erro tático, quando não
se pode dispensar o apoio (e o voto) de estudantes, profissionais da educação e
suas famílias.
Paulo Freire deve estar se revirando no túmulo. Mas a "reforma"foi festejada pelo O Globo. Tudo a ver
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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